terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O convento dos pregadores

Foi em Toulouse que São Domingos fundou aquilo que podemos chamar o primeiro convento dominicano, a primeira casa de irmãos pregadores. Hoje nada resta desse primitivo espaço.

Mas se não existem as paredes, as pedras que as sustentaram, existe ainda hoje o espirito que animou essa primeira comunidade, que deu vida ao que ali se viveu.

Desde o primeiro momento que os homens que se juntaram a Domingos de Guzman procuraram viver em comunidade, uma união de vida, uma união de oração e uma união na pregação.

O convento não é como uma abadia, que tem extensas propriedades sobre as quais tem que se vigiar e exercer a administração. O convento não exige o voto de estabilidade que exige a vida monástica, a fixação a um mosteiro localizado num determinado lugar.

Os conventos dominicanos nasceram na cidade, são fruto do desenvolvimento urbano que marcou o século treze, e estão ao serviço da cidade e da sua cultura. Ainda hoje e passados oitocentos anos sobre a fundação da Ordem é a cidade o nosso campo de acção.

O convento é afinal um convénio estabelecido entre todos os membros da comunidade que o compõem no sentido da prossecução do fim a que se destinam, a pregação e a salvação das almas. A oração, o estudo e a vida comum propiciam e potencializam a realização da missão.

Para fazer face a esta missão, e à forma como ela se exercia, encontramos nas igrejas dos conventos uma disposição fora do comum, alterada no século dezasseis com as normas litúrgicas e arquitectónicas emanadas pelo Concílio de Trento.

Nos conventos primitivos da Ordem podemos verificar como a pregação marcava a disposição e organização do espaço, não só na igreja, com o púlpito, mas também nas dependências mais básicas, como o dormitório. Face à necessidade do estudo pessoal para a pregação bem cedo os dominicanos abandonaram os dormitórios comuns e adoptaram as celas individuais.

 
Ilustração: Absides da igreja do convento de São Domingos de Tuy, Espanha.

A opção pela Ordem dos Pregadores

Ao escrever a “Vida de São Domingos”, o Padre Henri Lacordaire deixou apontadas as razões que o tinham levado a optar pela Ordem de São Domingos e a restaurá-la em França. Razões pessoais, mas que se mantêm perfeitamente válidas para fundamentar uma opção a tomar hoje em dia.

“Se me perguntam porque preferi a Ordem dos Pregadores, responderei que é a mais conforme à minha natureza, à minha inteligência, ao meu fim. À minha natureza pelo seu governo, à minha inteligência pelas suas doutrinas, ao meu fim pelos seus meios de acção, que são principalmente a pregação e a ciência sagrada.

Contudo, com esta preferência, não procuro negar nenhuma outra Ordem, estimo-as a todas e tenho presente a carta de Clemente IV a um cavaleiro que o consultou sobre tomar o hábito dominicano ou o hábito franciscano.

‘Clemente, bispo e servo dos servos de Deus, ao nosso amado filho, cavaleiro, saúde e bênção apostólica. Pedes-nos um conselho que levas já contigo, porque se o Senhor te inspirou deixar o século em busca de uma melhor vida, não queremos nem podemos opor-nos ao espirito de Deus, considerando sobretudo que tens um filho bem-educado, como acreditamos, o qual saberá governar a tua casa.

E se, perseverando no teu desígnio, perguntas qual de ambas as Ordens, de Pregadores ou Menores, deves eleger, deixamo-lo à tua consciência, uma vez que podes conhecer por ti próprio as suas respectivas observâncias, que não são de todo iguais, e que em diversos pontos mutuamente se superam.

Com efeito, em uma dessas Ordens a cama é mais dura, a nudez mais rígida, e mais do que alguns pensam, a pobreza mais profunda; mas na outra, a comida é mais frugal, os jejuns mais extensos, e há alguns que julgam a sua legislação mais santa.

Não preferimos pois, uma ou outra, acreditamos que ambas fundadas na estrita pobreza, tendem ao mesmo fim, que é a salvação das almas. Por isso, abraces esta ou aquela, tomarás o caminho estreito e entrarás pela porta estreita à terra doce e espaçosa.

 Pelo que pesa atentamente, examina com cuidado, qual é a que melhor assenta ao teu espirito e na qual esperas que te irá melhor, e abraça-a sem prejuízo de amar a outra, porque é execrável o frade Pregador que não ama os Menores, e é execrável e condenável o frade Menor que despreza e aborrece a Ordem dos Pregadores. Dado em Perugia, a 13 de las calendas de Maio, ano segundo do nosso Pontificado.’

Estes sentimentos do Papa Clemente IV são os meus. Escolhi a Ordem que melhor assenta ao meu espirito e na qual espero que tudo me irá bem, sem defraudar a nenhuma pelo amor e pelo respeito que devo a todas.”

 
Ilustração: “Henri Dominique Lacordaire”, de Théodore Chassériau, Museu do Louvre.  

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Da solidão de Domingos ao grupo dos irmãos

Sabemos que em 1207, Diego de Osma, o bispo com quem Domingos tinha viajado pela Europa, regressa à sua diocese e terra natal, vindo a falecer pouco tempo depois.

São Domingos fica assim sozinho no sul de França e no território dos Cátaros e Albigenses, pois também Pedro, Raul e Arnaldo desaparecem, o primeiro assassinado e os outros dois retirados para os seus mosteiros cistercienses.

São tempos de solidão, de incompreensão, tempos duros em que enfrenta as críticas do alto clero e as maquinações e zombarias dos hereges que procuram tirar-lhe a vida. São também tempos de muita instabilidade social e política pois a peste e a guerra fazem a sua aparição no território.

Uma preocupação rondava contudo a cabeça de São Domingos e o seu coração; a pregação não podia decair e era urgente recrutar colaboradores para a árdua tarefa. Colaboradores que se unissem não só na missão mas igualmente no testemunho de vida, comum e pobre à semelhança dos hereges.

Em 1214 é-lhe pedido pelo bispo de Toulouse que se fixe juntamente com aqueles poucos colaboradores que já conseguiu recrutar. Será na casa de Pedro Seila, homem rico e amigo de Domingos, que o pequeno grupo se reunirá e começará a viver de uma forma estável a vida comum ao estilo dos religiosos.

Em 1216 a comunidade comporta já cerca de quinze homens que partilham o mesmo tecto e as mesmas lições de teologia, pois era necessário que estivessem bem fundamentados nos conhecimentos bíblicos e teológicos para que pudessem partir a pregar.

Um ano após a constituição daquele que podemos chamar o primeiro convento, o grupo é disperso por São Domingos, numa audácia incompreensível no momento, mas preciosa para o futuro da Ordem.

Passados quase oitocentos anos sobre esta primeira fundação continua a ser necessário partilhar um espaço e um ritmo de vida comum. A par da palavra pregada pela voz e pela letra é outra forma de pregação que possuímos e por isso a chamada vida comum é um dos pilares da estrutura e espiritualidade da Ordem.

 
Ilustração: “São Domingos”, de José Gil de Castro, Museu Nacional de Belas Artes do Chile.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Desfrutar da missão a que somos enviados

Em 2009, o dominicano espanhol Felicíssimo Martinez, proferiu uma palestra aos membros do Capítulo da Província do Santíssimo Rosário, reunido em Hong Kong para a eleição de Prior Provincial, sobre a qualidade de vida a que estamos chamados a ter enquanto religiosos.

Os últimos parágrafos são dedicados à satisfação, à alegria pessoal, à necessidade de se desfrutar da missão a que somos chamados, pois só dessa forma podemos servir verdadeiramente os irmãos e glorificar a Deus. Pela importância dessa satisfação como elemento de discernimento deixo aqui esses parágrafos.
Sendo eu estudante ouvi dizer a um professor: “eu só prego quando me manda o prior”. Não é que me tivesse escandalizado de todo, mas alguma coisa me escandalizou, porque não podia compreender que isto fosse dito por um membro da Ordem dos Pregadores. Que teria dito Humberto de Romans deste religioso?
A conclusão que tiro hoje, depois de muitos anos na Ordem e na Província, é que para aquele religioso a missão da pregação era uma carga, um peso, uma penitência, uma obrigação imposta…
Pois bem, eu acredito que para que a missão forme parte da nossa qualidade de vida, para que nos proporcione satisfação pessoal, apesar do cansaço, da rejeição, da frustração que às vezes traz consigo, é necessário aprender a desfrutar da missão.
Não basta a satisfação pessoal da missão cumprida, é necessário também aprender a desfrutar da missão, e isto em dois sentidos:
1 – Aprender a desfrutar das relações curtas, como ver as crianças a crescer e a amadurecer num colégio, como ver os fiéis a crescer cristãmente numa comunidade paroquial, como ver uma pessoa encontrar sentido para a vida através das nossas palavras ou da nossa simples presença, como ver um casal que recompõe a sua relação graças ao nosso acompanhamento…
Isto é aprender a desfrutar da missão, mas para tal necessitamos reeducar-nos na afectividade e no celibato, e não fazer deste uma muralha defensiva face a qualquer afecto humano ou para nos livrarmos do sofrimento.
2 – Aprender a desfrutar também as relações largas, ou seja, esses trabalhos realizados a fundo perdido, do quais nem sequer sabemos quem beneficiará, pelos quais nunca ninguém nos virá agradecer… mas que estão aí, como por exemplo, a luta pela justiça e pela paz, pelos direitos humanos no mundo, o exercício do governo da vida religiosa, um livro que não sabemos a quem irá beneficiar.
Graças a uma missão realizada e desfrutada podemos dizer ao fim dos nossos dias: “não foi inútil Senhor a nossa vida sobre a terra”.

Ilustração: Dominicanos do Convento de São Domingos de Bolonha em oração.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

E tudo começa no silêncio feminino

Por mais estranho que pareça, a verdade é que a Ordem dos Pregadores, os dominicanos, começaram com um grupo feminino, um grupo que não tem direito a pregar nem a exercer nenhum apostolado activo, mas que se tornou, apesar disso, fundamental para a Ordem.

Ainda que a tradição nos diga que a fundação do Mosteiro de Prouilhe se deva à visão de uma estrela por parte de São Domingos sobre o lugar onde deveria ocorrer a fundação, a verdade histórica é que a sua fundação se deveu uma vez mais às circunstâncias do momento.

São Domingos não tinha nenhum projecto de fundação monástica, a mobilidade e a liberdade de acção eram o seu quotidiano, mas o facto de algumas mulheres convertidas da heresia necessitarem de um lugar onde sobreviverem obrigou-o a encontrar-lhes esse lugar e uma forma estável de vida.

São o primeiro grupo, que encerrado nas paredes de um mosteiro, isolado do mundo por umas grades, dá início ao ministério da pregação. É a casa da “Santa Pregação”, onde mais que a palavra são o exemplo e o testemunho que pregam, onde o silêncio dá origem à palavra que brota na boca dos pregadores.

Ainda que posteriormente a história nos diga que muitas mulheres foram obrigadas a ir para a clausura dos mosteiros contra a sua vontade, que tenham sido retiradas do mundo pelos seus familiares como castigo, as grades e a clausura que esta forma de vida assumia não eram uma condenação nem um impedimento à saída, mas uma protecção contra os intrusos e as agressões, uma salvaguarda do estilo de vida que se assumia.

Ao iniciar-se desta forma a Ordem dos Pregadores, Deus mostra-nos que a pregação é precedida pelo silêncio e pela contemplação, que a palavra pregada só pode ser eficaz na medida em que nasce nesse ambiente salvaguardado dos ataques do mundo.

Ainda hoje muitas irmãs dominicanas vivem em mosteiros de clausura, e a partir dali exercem a sua pregação através do silêncio, da escuta da Palavra, da oração pessoal e comunitária, na qual não só pedem por aqueles que se lhes encomendam mas também pelos irmãos pregadores, pela palavra que brota das suas bocas.

Passados oitocentos anos sobre a fundação do primeiro mosteiro, hoje como nessa longínqua data, continuamos a necessitar de silêncio, de espaços de contemplação para nos encontrarmos com a Palavra, e de irmãs que intercedam junto de Deus pelo apostolado dos pregadores.

 
Ilustração: Monjas Dominicanas de New Jersey no Oficio do Coro.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O projecto de São Domingos

Domingos de Guzman era cónego na Catedral da diocese de Osma, em Castela, quando no princípio do século XIII se viu envolvido numa viagem pela Europa, a qual lhe facultou as circunstâncias para a fundação da Ordem dos Pregadores.
 
Domingos tinha cerca de trinta anos quando teve que acompanhar o seu bispo Diego de Osma numa missão diplomática para assegurar o casamento de uma princesa do norte da Europa com um príncipe da Coroa de Castela.
É nesta viagem, entre o ir e o regressar, que São Domingos se encontra no Midi francês com a heresia dos Cátaros, um grupo numeroso e influente de homens e mulheres que tentam viver de forma radical o Evangelho.
Abandonados a si mesmos por um clero encerrado nas grandes abadias, e na sua maioria inculto e arrogante, estes homens e mulheres tentam na sua simplicidade viver o Evangelho como as primitivas comunidades cristãs, numa linha radical que se afasta da verdadeira fé.
Diante de tal fenómeno São Domingos pergunta-se sobre a salvação daquelas almas, sobre a possibilidade de conversão e regresso ao seio da Igreja e da verdadeira fé. Nasce assim o fundamento mais profundo do projecto de pregação de Domingos e da Ordem dos Pregadores, a salvação das almas.
Não nos estranha por isso que mais tarde, quando já tinha irmãos a colaborar na sua missão, durante a noite esses mesmos irmãos o escutassem a rezar junto do altar, “Senhor que será dos pecadores?”.
Para responder a esta pergunta e desafio São Domingos instala-se perto de Carcassone, numa pequena aldeia chamada Fanjeaux, a partir da qual percorre as aldeias e cidades vizinhas anunciando a verdade do Evangelho, participando em debastes e disputas com os hereges cátaros sobre os caminhos de fidelidade ao Evangelho.
Tal missão obriga-o ao estudo atento da Palavra da Escritura, pelo que a partir de determinado momento sabe já de memória o Evangelho de São Mateus e as Cartas de São Paulo, que sempre o acompanharam durante a sua vida. Contudo, não basta conhecer a Palavra.
Face à radicalidade de vida dos Cátaros, São Domingos opta por viver tão pobre e radicalmente como eles, assumindo que o exemplo move mais que as palavras, que a sua pobreza pode ser interpelativa na sua radicalidade. Nasce assim uma unidade, uma simbiose que vai marcar a identidade dominicana e a sua pregação, a palavra orienta o exemplo e o exemplo confirma a palavra.
Não podemos esquecer no entanto que todas as heresias e movimentos espirituais que se desviaram da verdade da fé comportam e assentam numa parte dessa mesma verdade, pelo que se torna necessário conhecer o falso e o errado para que se possa converter e conduzir à verdade.
Tal como há oitocentos anos, também hoje o cristão e o dominicano necessitam viver essa exigência de conhecer e perceber as ideias e movimentos do mundo. Necessitamos discernir onde se joga a verdade e a falsidade para podermos dizer alguma coisa, para podermos oferecer alguma luz que conduza à salvação das almas.
Tal processo e discernimento, tal oferta aos homens e mulheres nossos irmãos, não pode contudo perder o equilibro harmonioso entre a verdade e a caridade, não pode esquecer que o amor só existe sem medida na medida da verdade plena.   
Ilustração: Muralhas e Castelo de Carcassone, França.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O fundador São Domingos de Guzman

Um dia desta semana, conversando com uma amiga irmã dominicana, trocávamos comentários sobre a forma como São Domingos, o fundador da Ordem dos Pregadores, nos tinha sido apresentado.

Para essa amiga, já com bodas de ouro de vida consagrada cumpridas, perdura na memória a imagem de um São Domingos austero, um São Domingos marcado pelos exercícios de ascese, um São Domingos de alguma forma distante, frio, impessoal, compaginada com uma outra imagem mais piedosa e romântica, mas igualmente destorcida na medida em que dissimula ou esconde a pessoa com as suas limitações e fraquezas.

Para esta imagem e os seus contornos contribuiu enormemente a “Vida de São Domingos”, que o Padre Lacordaire escreveu em pleno século dezanove, quando se lançava no desafio de restaurar a Ordem em França, e que foi manual de formação dominicana para muitas gerações de irmãos e irmãs.

Ali podemos encontrar um São Domingos e uma vida que são impulsionados desde o primeiro momento por uma ideia visionária, por uma grande genialidade, em que as dúvidas, os problemas não existem, pois desde o primeiro momento, poderíamos dizer desde o nascimento, tudo se coordena e orienta para a prossecução do fim último, a fundação de uma grande Ordem religiosa ao serviço da Igreja e da verdade da Doutrina da Fé.

Como filho de São Domingos do século vinte e um, a imagem que recebi de São Domingos distancia-se bastante da apresentada pelo Padre Lacordaire e da que a minha querida irmã recebeu na sua formação inicial.

De facto, as histórias de São Domingos que li, que me foi dado conhecer, a começar pela monumental e historicamente fundamentada do Padre Vicaire, são histórias em que a pessoa humana de Domingos de Guzman não é escondida, em que não há qualquer medo nem problema em assumir que o projecto da Ordem foi algo que foi crescendo com o tempo e face às circunstâncias, umas favoráveis, outras adversas.

Diante destas histórias, destas vidas, em que se assume a vida com toda a sua grandeza e miséria, em que se percebe a pedagogia divina em paralelo com a força criativa do homem face aos desafios que se lhe colocam, sentimos que também nós podemos avançar e arriscar uma resposta no seguimento de Jesus.

Afinal o nosso fundador, os fundadores de qualquer Ordem ou Congregação, são homens e mulheres como nós, tiveram também os seus medos, as suas dúvidas, foram crescendo tacteando uma resposta à medida que a graça de Deus ia agindo neles e eles se iam deixando trabalhar por ela.

Com eles e como eles também nós podemos fazer o mesmo. Está ao nosso alcance!


Ilustração: “São Domingos”, fresco de Fra Angélico no Convento de São Marcos em Florença.